domingo, 9 de fevereiro de 2020

Considerações sobre a família no melodrama

Possivelmente, entrelaçados em virtude da organização burguesa que se estabelecia, assim como da ordem que se esperava impor nos anos que sucederam a Revolução, o melodrama apresenta, de forma predominante, a conservação e/ou restauração da honra, o heroísmo e a abnegação de seus protagonistas que representam o bem, de modo frequente, associados aos ideais da família, da reverência à pátria e do cumprimento às normas morais.

No tocante à família, é certo que pai, mãe e filhos existem desde os primórdios da humanidade, no entanto, esta relação entre os membros familiares passou por inúmeras transformações até que se chegasse ao modelo contemporâneo em que, sobremodo, domina a afetividade.

Havia, ao tempo do aparecimento do melodrama, uma família de ordem primordialmente patriarcal, já recolhida à intimidade do lar, conforme Ariès (1981), sobretudo, nos estratos sociais mais elevados – o que não impedia que, mesmo nestas camadas da população ou em outras menos abastadas, ainda se vivesse o estilo da linhagem, em que coabitavam duas ou mais gerações na mesma casa, incluindo primos e sobrinhos solteiros, uma vez que mesmo “no início do século XIX, uma grande parte da população, a mais pobre, e mais numerosa, vivia como as famílias medievais, com as crianças afastadas das casas dos pais” (ARIÈS, 1981, p. 189).

O que estabeleceu a diferenciação familiar, de modo especial, entre os séculos XVI e XVII, diz respeito ao “estreitamento dos laços de sangue” (ARIÈS, 1981, p. 144), que se deu, de maneira peculiar, em relação à necessidade de proteção aos membros da família – crianças já não mais eram postas a trabalhar na casa de estranhos para aprenderem ofícios e nem se ausentavam do convívio paterno para viverem com mestres e/ou preceptores, na residência destes, de tal sorte que é possível afirmar que a própria criança determinaria o vínculo cada vez maior entre cada família. Por outro lado, a situação da mulher sofreria um revés – se, durante séculos, ela geriu os seus bens hereditários, a partir do século XIV, “a mulher casada torna-se uma incapaz, e todos os atos que faz sem ser autorizada pelo marido ou pela justiça tornam-se radicalmente nulos” (ARIÈS, 1981, p. 145) -, assim sendo, o homem assumia o comando do lar e a mulher e os filhos eram postos sob a sua responsabilidade, competindo-lhe, neste sentido, prover-lhes o alimento, os cuidados de saúde, assim como protegê-los do meio exterior.

É importante mencionar que a Igreja não havia instituído o casamento como um sacramento obrigatório, compreendendo-o, em muitos casos, como “uma concessão à fraqueza da carne” (ARIÈS, 1981, p.146). Tal situação, todavia, sofreria modificações no momento em que a família passasse a ser comparada à Sagrada Família: São José, Nossa Senhora e o Menino Jesus. Assim é que: “Todas as família eram convidadas a considerar a Sagrada Família como seu modelo” (ARIÈS, 1981, p. 151).

A concepção de família em sua íntima relação com a religião, contudo, não impediria que traições conjugais, estupros, incestos ocorressem nas mais diferentes classes sociais, o que se modifica - se for considerada, por exemplo, a relação familiar predominante na Idade Média em que o sexo era praticado diante de crianças menores -, é justamente a intimidade entre os membros da família e o respeito aos sentimentos que, teoricamente, devem uni-los, preservando-se a criança em todos os sentidos, inclusive, no caso de presenciar a conjunção carnal entre os pais.

Com o advento da Revolução Francesa, o incentivo à escolarização, o investimento em uma linguagem padrão em detrimento dos dialetos dominantes ao período anterior à Revolução e a instituição de um modelo rigoroso de cidadania e civilidade determinaram que os anos que sucederam à queda de Luis XVI fossem marcados pela valorização da família.

A família aparece, predominantemente, no corpus analisado nas peças Sublime perdão e O seu último Natal, atribuídas a Amaral Gurgel.

Sublime perdão e O seu último Natal têm um ponto que as aproxima: no Natal, verifica-se uma morte, no primeiro caso, de Roberto, filho de Teodoro; no segundo caso, de Júlio, filho de Carolina; duas famílias em situação financeira oposta. No caso de Sublime perdão, se Roberto é o filho que Teodoro prometeu vingar, ele também é o pai que Rosinha não conheceu e cuja história somente lhe é desvendada com a proximidade do assassino; por seu turno, em O seu último Natal, a ausência do pai de Júlio obrigou-o a abandonar os estudos para ajudar no sustento da família, mas fica claro o sofrimento dele, da mãe e dos irmãos pelo modo de vida que o pai levava: bêbado, agressivo, miserável. Assim sendo, é possível, do ponto de vista estrutural, postular-se que as duas peças dialogam, em primeiro lugar, pelo período do ano em que se passam, mas, acima de tudo, pela organização familiar que enfocam e que repercutirá na temática de cada uma.

Alguns trechos do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe" no capítulo que analisa a família e suas representações nos textos que compuseram o corpus de pesquisa.