domingo, 3 de março de 2019

O carrasco da escravidão



            A peça O carrasco da escravidão, composta em três atos, sem autoria conhecida, recebe também o título de A verdade de um escravo, tendo, como personagens principais, o Comendador Gouveia, declaradamente o vilão; Anastácio, Guiomar e Pai João, o escravo. A chegada do Comendador e da filha, Guiomar, desestabiliza a precária ordem em que vivia a casa de Anastácio, cuja mãe encontrava-se à beira da morte. O carrasco da escravidão traz, de um lado, a confiança inabalável do jovem fidalgo, Anastácio, em relação aos seus escravos, especialmente, Pai João, encarregado de cuidar do seu boi de estimação, o boi Pintadinho. Anastácio trata-os com respeito e dignidade. De outro lado, o Comendador Gouveia, que provocara a ruína do pai do fidalgo, despreza todo e qualquer escravo, considerando-os não confiáveis, passíveis de humilhações recorrentes. Os dois homens encontram-se na casa de Anastácio porque a sua mãe, madrinha de Guiomar, a filha do Comendador, está doente. A velha senhora deseja ver a sua afilhada, obrigando Anastácio a receber Gouveia em sua residência.

            Anastácio argumenta que “existem pessoas que não mentem, nem que seja preciso para salvar a própria vida”, sendo ironizado pelo Comendador. Anastácio conta que, na fazenda, há um preto velho que nunca mentiu, trata-se de Pai João que, naquele momento, entra na sala, sendo hostilizado pelo Comendador. Anastácio e Pai João traçam uma rápida conversa, o negro é dispensado e o Comendador passa a urdir uma trama para apossar-se das terras de Anastácio, provando-lhe que os negros mentem. Gouveia propõe uma aposta, mas Anastácio exige a presença de um tabelião que lavre os seus termos, afinal, o Comendador admitira que, por vezes, costumava mentir. Diante do tabelião, Gouveia dita a escritura, datada de 30 de janeiro de 1839. Todos assinam o documento, ajustando-se que a aposta terá a duração de um ano e que Pai João ficará afastado de Anastácio, residindo, a partir de então, na fazenda velha. Gouveia comunica a filha sobre a aposta e informa-lhe que ela será parte de uma cilada que fará Pai João mentir: a moça deve propor casamento ao escravo com a condição que, como prova de amor, o negro mate o boi Pintadinho.

            No segundo ato, Guiomar cumpre as determinações paternas e, após algumas tentativas, consegue que Pai João sacrifique o boi. Enquanto o homem afasta-se para cumprir o pedido, ela roga perdão a Deus pelo pai sempre insatisfeito e bruto, além de reclamar a falta da mãe, que faleceu quando ainda era criança. Passada uma hora, Pai João entra com um pedaço da carne do boi e propõe assá-la, mas Guiomar convence-o a deixar para o dia seguinte. Em pouco tempo, o negro percebe que caíra em uma cilada e começa a preparar-se para contar a Anastácio sobre a morte do animal, fazendo conjecturas sobre como dizer-lhe a verdade, mas, ao final, se convence que deverá mentir.

O terceiro ato inicia-se na casa da fazenda e, em seguida, tem-se a chegada de Guiomar que traz a carne e entrega-a ao pai. O Comendador informa que partirá imediatamente, afiançando que a aposta está ganha. Gouveia antegoza a derrota de Anastácio, entrega-lhe a carne, garantindo-lhe que se trata da carne do boi Pintadinho, o que fará o negro mentir. Anastácio é atacado por Gouveia, que usa um punhal, no entanto, o rapaz reage e imobiliza o adversário. Gouveia pede desculpas. Anastácio determina que Tomé traga-lhe Pai João. Tomé regressa rapidamente porque encontrara Pai João na porteira da fazenda, o negro entra, cumprimenta o Comendador e Anastácio, que lhe pergunta sobre a fazenda, a criação e o boi. Pai João constrangido passa a contar a história e as artimanhas que a envolveram:

Óia, sinhô, nego tava na fazenda, e então apareceu a tentação branca, e falo que queria comê (...). Ela disse que casava cum zeu...dava a liberdade pra zeu (...). Nhonhô pode matá nego veio, mas o nego mato o seu boi Pintadinho, nego não sabe menti sinhô, nego nunca mentiu...

            O Comendador enfurece, Anastácio louva o homem que se pusera de joelhos a sua frente, enaltece a sua honradez e dedicação, promete-lhe a carta de alforria, extensiva aos demais escravos, e presenteia-lhe com a fazenda velha: “E quando alguém lhe perguntar como conseguiu a fazenda, diga que ganhou com a verdade de um escravo”. Anastácio informa ao Comendador que ele terá casa e comida, mas Gouveia não aceita o favor, garante que o título de Comendador permitirá o seu sustento e que não tem mais obrigações com a filha.

Guiomar ouve o pai, que ainda imputa-lhe a culpa pela miséria e eis que surge um novo componente na história da moça, até então inesperado. Anastácio conta-lhe que Gouveia não é o seu pai legítimo, o qual fora morto a mando do Comendador para casar-se com a mãe da jovem. Guiomar indaga sobre a mãe e sabe que ela morreu após o novo casamento, sem causa conhecida. A jovem quer saber por que foi mantida na companhia de Gouveia e Anastácio explica que o homem era temido, ainda que todos receassem que ela fosse objeto de prazer do Comendador da mesma forma como ele agia com as escravas mais jovens, violentadas e abandonadas.

            Gouveia prepara-se para apunhalar Anastácio, mas é detido por Pai João que, novamente, salva o jovem. Guiomar, a partir daí, será acolhida na casa de Anastácio, como afilhada da mãe do fazendeiro e o Comendador será preso para cumprir a pena que lhe for imputada como carrasco da escravidão, “esquecendo-se do dever da humanidade e das palavras do pai eterno que manda: Amai-vos uns aos outros”.

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