domingo, 9 de fevereiro de 2020

Considerações sobre a família no melodrama

Possivelmente, entrelaçados em virtude da organização burguesa que se estabelecia, assim como da ordem que se esperava impor nos anos que sucederam a Revolução, o melodrama apresenta, de forma predominante, a conservação e/ou restauração da honra, o heroísmo e a abnegação de seus protagonistas que representam o bem, de modo frequente, associados aos ideais da família, da reverência à pátria e do cumprimento às normas morais.

No tocante à família, é certo que pai, mãe e filhos existem desde os primórdios da humanidade, no entanto, esta relação entre os membros familiares passou por inúmeras transformações até que se chegasse ao modelo contemporâneo em que, sobremodo, domina a afetividade.

Havia, ao tempo do aparecimento do melodrama, uma família de ordem primordialmente patriarcal, já recolhida à intimidade do lar, conforme Ariès (1981), sobretudo, nos estratos sociais mais elevados – o que não impedia que, mesmo nestas camadas da população ou em outras menos abastadas, ainda se vivesse o estilo da linhagem, em que coabitavam duas ou mais gerações na mesma casa, incluindo primos e sobrinhos solteiros, uma vez que mesmo “no início do século XIX, uma grande parte da população, a mais pobre, e mais numerosa, vivia como as famílias medievais, com as crianças afastadas das casas dos pais” (ARIÈS, 1981, p. 189).

O que estabeleceu a diferenciação familiar, de modo especial, entre os séculos XVI e XVII, diz respeito ao “estreitamento dos laços de sangue” (ARIÈS, 1981, p. 144), que se deu, de maneira peculiar, em relação à necessidade de proteção aos membros da família – crianças já não mais eram postas a trabalhar na casa de estranhos para aprenderem ofícios e nem se ausentavam do convívio paterno para viverem com mestres e/ou preceptores, na residência destes, de tal sorte que é possível afirmar que a própria criança determinaria o vínculo cada vez maior entre cada família. Por outro lado, a situação da mulher sofreria um revés – se, durante séculos, ela geriu os seus bens hereditários, a partir do século XIV, “a mulher casada torna-se uma incapaz, e todos os atos que faz sem ser autorizada pelo marido ou pela justiça tornam-se radicalmente nulos” (ARIÈS, 1981, p. 145) -, assim sendo, o homem assumia o comando do lar e a mulher e os filhos eram postos sob a sua responsabilidade, competindo-lhe, neste sentido, prover-lhes o alimento, os cuidados de saúde, assim como protegê-los do meio exterior.

É importante mencionar que a Igreja não havia instituído o casamento como um sacramento obrigatório, compreendendo-o, em muitos casos, como “uma concessão à fraqueza da carne” (ARIÈS, 1981, p.146). Tal situação, todavia, sofreria modificações no momento em que a família passasse a ser comparada à Sagrada Família: São José, Nossa Senhora e o Menino Jesus. Assim é que: “Todas as família eram convidadas a considerar a Sagrada Família como seu modelo” (ARIÈS, 1981, p. 151).

A concepção de família em sua íntima relação com a religião, contudo, não impediria que traições conjugais, estupros, incestos ocorressem nas mais diferentes classes sociais, o que se modifica - se for considerada, por exemplo, a relação familiar predominante na Idade Média em que o sexo era praticado diante de crianças menores -, é justamente a intimidade entre os membros da família e o respeito aos sentimentos que, teoricamente, devem uni-los, preservando-se a criança em todos os sentidos, inclusive, no caso de presenciar a conjunção carnal entre os pais.

Com o advento da Revolução Francesa, o incentivo à escolarização, o investimento em uma linguagem padrão em detrimento dos dialetos dominantes ao período anterior à Revolução e a instituição de um modelo rigoroso de cidadania e civilidade determinaram que os anos que sucederam à queda de Luis XVI fossem marcados pela valorização da família.

A família aparece, predominantemente, no corpus analisado nas peças Sublime perdão e O seu último Natal, atribuídas a Amaral Gurgel.

Sublime perdão e O seu último Natal têm um ponto que as aproxima: no Natal, verifica-se uma morte, no primeiro caso, de Roberto, filho de Teodoro; no segundo caso, de Júlio, filho de Carolina; duas famílias em situação financeira oposta. No caso de Sublime perdão, se Roberto é o filho que Teodoro prometeu vingar, ele também é o pai que Rosinha não conheceu e cuja história somente lhe é desvendada com a proximidade do assassino; por seu turno, em O seu último Natal, a ausência do pai de Júlio obrigou-o a abandonar os estudos para ajudar no sustento da família, mas fica claro o sofrimento dele, da mãe e dos irmãos pelo modo de vida que o pai levava: bêbado, agressivo, miserável. Assim sendo, é possível, do ponto de vista estrutural, postular-se que as duas peças dialogam, em primeiro lugar, pelo período do ano em que se passam, mas, acima de tudo, pela organização familiar que enfocam e que repercutirá na temática de cada uma.

Alguns trechos do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe" no capítulo que analisa a família e suas representações nos textos que compuseram o corpus de pesquisa.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Um resumo de tudo: o Serelepe


Nas primeiras décadas do século XX, Francisco Silvério de Almeida realizava palestras cômicas para os trabalhadores das lavouras de café no interior paulista. Certa vez, sentindo-se adoentado, ele determinou ao filho, José Epaminondas, que avisasse aos organizadores para cancelarem a apresentação. Mas, José Epaminondas decidiu fazer o espetáculo no lugar do pai e foi um sucesso. Nascia Nhô Bastião.

Orientados pelo pai, Nhô Bastião e sua irmã Isolina, a Nh'ana, formaram uma dupla caipira que passou a apresentar-se, primeiro, nas lavouras cafeeiras e, depois, no Circo Oriente. Nh'ana seguiu seu rumo, adquirindo o seu próprio teatro e Nhô Bastião adquiriu uma politeama (teatro de zinco). Ele partia, então, de Ponta Grossa/PR, onde tinha uma chácara, para excursões pelo interior de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Em 1962, Nhô Bastião faleceu e o palco passou, em definitivo, para o seu filho, José Maria de Almeida, o popular palhaço Serelepe. José Maria havia se casado em 1959 com Lea Benvenuto, o casal teve 6 filhos: Ben-hur, Maria José, Isabel, Marcelo e Ulisses. A Marcelo coube seguir a veia cômica da família e ele adotou o nome Serelepe.

Em "Entre risos e lágrimas: as representações do melodrama no teatro mambembe", entrelaçando às histórias do teatro e do circo, eu conto um pouco da história do Teatro Serelepe e analiso melodramas (peças de chorar) apresentadas nos anos 60 e 70.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Nhô Bastião, pai e avô de Serelepes


Em conformidade com José Maria de Almeida, o velho palhaço Serelepe (já falecido), forjado nas matinês dominicais pelo pai, Nhô Bastião, na verdade, os shows cômicos individuais, em sua família, eram, inicialmente, protagonizados por Francisco Silvério de Almeida que, em determinada ocasião, adoeceu e determinou ao filho, José Epaminondas, que comunicasse aos organizadores a sua impossibilidade, cancelando, pois, o espetáculo. No entanto, José Epaminondas, a exemplo do pai, que se apresentava sem a caracterização típica de palhaço (ambos adotaram o gênero caipira, em voga na região naquela época), decidiu que, com a experiência adquirida ao observar o pai, não cancelaria a sessão prevista e apresentou-se como comediante. O seu trabalho agradou a todos, mas havia o temor que não satisfizesse o pai... Diante da euforia dos amigos, dos conhecidos que haviam visto o desempenho de José Epaminondas, Francisco Silvério decidiu conceder um espaço, em suas apresentações, para o mais novo comediante da família. Nascia, assim, Nhô Bastião.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A história do Teatro Serelepe

Em 1929, surgiu a dupla caipira Nhô Bastião (José Epaminondas de Almeida) e Nh’ana (Isolina, sua irmã), que se apresentava no interior paulista entre lavouras de café, levando o riso aos trabalhadores e que, via de regra, encerrava os seus espetáculos com bailes no mais puro estilo local – as caipiradas. Mesmo mais tarde, quando o grupo comprou o Circo Oriente e, depois, a Politeama Oriente, o seu público continuou entre as populações das pequenas cidades, muitas vezes, às margens de grandes fazendas, propiciando o espetáculo para o espectador das pequenas cidades e para aqueles egressos do trabalho no campo.


Do circo, o grupo passou a apresentar-se no pavilhão Mococa e, mais tarde, em outro pavilhão de zinco, pré-montado, que recebeu o nome de Politeama Oriente. Nessa ocasião, a trupe já excursionava pelo interior paulista e paranaense, mais tarde, incluindo os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Com o surgimento dos pavilhões, encerrou-se a apresentação de variedades que caracterizava a primeira parte do espetáculo, predominando, desde então, a encenação das peças sérias ou cômicas, conforme a equipe do teatro organizasse o seu cartel de textos e mesmo em função do sucesso alcançado em cada praça.


Anos mais tarde, em Ponta Grossa (PR), a família Benvenuto juntar-se-ia aos artistas da Politeama Oriente. O encontro entre estas duas famílias resultou na união matrimonial entre os filhos José Maria de Almeida e Léa Benvenuto de Almeida que casaram em Pelotas/RS no ano de 1959, desta união surgiram seis filhos. Em 1972 na cidade de Faxinal do Soturno/RS, José Ricardo de Almeida e Ana Benvenuto de Almeida.


Em 1962, com a morte de Nhô Bastião, o palco passou a José Maria, o palhaço Serelepe. Entre 1962 e 1981, o Teatro Serelepe percorreu inúmeras cidades dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, apresentando um repertório que variava entre dramas, comédias, alta comédia, farsas, peças infantis. Estas peças, de um modo geral, fazem parte do cartel de apresentação da maioria das companhias itinerantes ainda em atuação, contudo, muitas já não guardam mais a ideia original.


Em um tempo em que, na maioria das cidades interioranas sequer havia cinema e, mesmo naquelas que dispusessem de uma sala cinematográfica, os filmes com som e imagem de baixa qualidade, ainda chegavam com grande atraso se comparados às grandes cidades do país; além disso, a televisão, até meados dos anos 1970, era um bem acessível para poucas famílias, apresentando sinal para repetição, frequentemente, fraco, com imagens distorcidas, de tal sorte que restavam poucas opções de entretenimento: festas e bailes religiosos, passeios em volta ao coreto da praça ou, nas comunas em que houvesse a passagem do trem, um passeio à gare da estação para ver o “trem de passageiros” aos domingos. Eventualmente, algum circo ou parque passava pelas referidas cidades, mas sem grande sucesso, de modo que a chegada do teatro sempre constituía uma importante novidade que animava todas as classes sociais. Asssim, o Teatro Serelepe granjeou sucesso nos locais por onde passou.
           

sábado, 11 de maio de 2019

Os dois sargentos


A peça original pertence a Théodore d’Aubigny, com tradução de Lourival França Pereira. A ação situa-se em 1941[1], em uma barreira sanitária que deveria impedir a propagação da febre amarela, na região do porto de Vandré, onde havia um presídio militar, e da Ilha de Rosez. Dividida em três atos, a história dos dois sargentos – Roberto e Guilherme - começa no Conselho de Guerra, acusados de dar passagem a uma mulher miserável e seus filhos famintos sem exigir-lhe o passe que liberava o seu trânsito, pondo em risco a saúde da população. Ainda integram a peça: Laura, sobrinha do carcereiro Valentin; o próprio carcereiro; o Incógnito (cuja identidade somente será revelada no final da peça); Gustavo, amigo de Guilherme; Valmor, inimigo de Roberto; a mulher e o filho de Guilherme.


Após o término do Conselho, os dois sargentos são recolhidos ao cárcere, sob a responsabilidade de Valentin. Roberto e Guilherme discutem o seu ato humanitário. Incógnito acompanha a conversa, elogia-os, mas ambos temem a pena capital. Enquanto isso, no castelo, todos esperam pelo Marechal Conde d’Alta Vila. – chefe das tropas. Os dois jovens, encarcerados, aguardam a decisão dos membros do Conselho. Guilherme crê no fuzilamento, mas Incógnito afirma que intercederá junto ao Marechal. O ajudante Valmor aparece e comunica a sentença – pena de morte para um dos réus a ser executada no dia seguinte, pela manhã, na esplanada do castelo. A sorte decidirá o condenado. Jogam-se os dados, Guilherme soma 11 pontos, Roberto atinge 12.  Condenado, Guilherme conta a Roberto que o seu nome é Luiz Derville, capitão, acusado de roubo. Pede-lhe que, livre, visite a sua família em Rosez e entregue um anel e alguns documentos. Quando o ajudante chega com o processo, Roberto propõe um acordo. Valmor libera Guilherme para visitar a sua família, prometendo voltar antes da execução. Caso Guilherme não retorne, Roberto será morto, bastando que o ajudante troque os nomes que a sorte escolhera. Guilherme é liberado e segue com Gustavo para a Ilha, porém, o ajudante tece uma trama, contando com a ajuda de Gustavo, para que Guilherme não regresse.

O segundo ato abre-se em uma casa humilde, na Ilha, onde vive a família de Guilherme. Sophia reconhece-o, abraça-o, o mesmo não acontece com o filho que, apesar disso, declara o seu amor. Guilherme conta as dificuldades enfrentadas, a mulher recorda o roubo e a destituição do outrora capitão Dervile. Enquanto conversam, Gustavo traz uma carta para Sophia, um documento que informa a inocência do marido e a reconstituição de todas as honras militares. Apesar disso, o homem mantém um tom de despedida, o que provoca a inquietação de Sophia. Ele, como num delírio, relembra os seus feitos militares. Diante da preocupação da mulher, Guilherme informa-lhe que está de partida para uma batalha e que teme o retorno. Gustavo, porém, conta-lhe o que houve e a mulher tenta impedir a partida do marido. Gustavo acalma-a, pois, segundo ele, ordens superiores impediam o regresso de Guilherme para cumprir a pena. O militar desespera-se ao saber que Gustavo e Valmor fizeram um acordo para matar Roberto. Em nome de sua honra, Guilherme desembainha a espada, quer matar Gustavo, não admite a covardia. Sai correndo!

No terceiro ato, retorna-se ao castelo, Roberto e Valentin conversam sobre o noivado e o posterior casamento do jovem sargento com Laura. Ambos acreditam cegamente no retorno de Guilherme e especulam sobre o homem que aparecera, no dia anterior, fazendo questionamento sobre os dois sargentos. Valentin avisa Roberto que todos sabem, no grupamento, que ele está condenado à morte, conforme disseminara o ajudante. Valmor aparece para preparar o ato executório, ameaça Valentin, confirma que o sargento Guilherme não voltará e que Roberto será morto. Valmor garante-lhe que já havia tomado todas as providências. 

Incógnito reaparece e dialoga com Valentin sobre o resultado do julgamento. Ambos partilham a mesma preocupação com as ações do ajudante, Valentin conta o acerto para a partida de Guilherme e a trama preparada por Valmor, acrescendo que Roberto desconhece os fatos. O Incógnito determina que Valentin busque Roberto e ambos travam uma conversa sobre honra, confiança, traição. O Incógnito afasta-se para observar as ações do ajudante que chega e surpreende a todos: informa que o barco regressou, mas não trouxe Guilherme e Gustavo, mas que ele – ajudante – precavido, solicitara o cumprimento da pena em 24 horas depois do momento aprazado, não sendo, porém, atendido em seu pedido. Roberto exclama: “Basta de hipocrisia, miserável, pode arrancar a máscara que na há de cobrir a consciência tão desprezível e abjeta. Através do disfarce, vê-se sem custo, a vileza desta alma torpe e indigna”. O ajudante acusa Valentin, garante que ele teria contado tudo para Roberto. O carcereiro confirma, afiança que assume as suas responsabilidades, que se tratava de um cabo reformado e que não desonraria o exército. Valmor ameaça-o, mas Valentin não retrocede.

A chegada da escolta, que deve conduzir o prisioneiro, põe frente à frente o Incógnito e o ajudante que se dirige rispidamente para o homem, mas ele reage, ordena que a execução seja suspensa e afirma que o ajudante será punido exemplarmente, ainda que o ajudante relute em entregar a sua espada diante do Marechal Conde D’Alta Vila. O Marechal declara que Valmor enfrentará o Conselho de Guerra para que seja punido por sua vileza. Neste momento, chega André, responsável pela embarcação, com uma carta enviada por Gustavo. O Marechal lê a carta que confirma o plano traçado pelo ajudante e traz um agravante, pois Gustavo declara: “conserve a sua palavra de subtrair o generoso Roberto ao castigo que deve sofrer pela falta de seu amigo”. O Marechal ordena a André que busque Gustavo e Guilherme na ilha. Laura entra e grita que um homem a nado foi salvo pelos marinheiros, trata-se de Guilherme que chegava para salvar a vida de Roberto.



[1] Ainda que o texto disponível mencione o ano de 1941, o texto original data de 1823 e não cita a sequência durante a Segunda Guerra Mundial. Houve, portanto, uma livre adaptação do ensaiador do Teatro Serelepe.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

O seu último Natal


            Em um tribunal, estão presentes um juiz; um promotor; um escrivão; Norberto, o advogado de defesa; Carolina, a mãe do acusado; Julio, o acusado; e os jurados. Assim, inicia-se O seu último Natal, cujo título original é Os transviados, peça, em três atos, atribuída a Amaral Gurgel.

            O promotor detém a palavra e acusa, alega que o assassino matou pelo prazer de matar, recorda e destaca as qualidades da vítima, João Carroceiro; lembrando que, no primeiro julgamento, Julio já havia sido condenado e não fora defendido pelo irmão. O promotor ainda rememora que Julio já havia sido condenado por roubo e que a sua mãe estivera, de casa em casa, implorar, junto aos jurados, clemência para o filho. Por fim, o promotor enfatiza que Julio teria um atenuante, o pai alcoólatra, mas que isso não seria motivo suficiente para limitar-lhe a pena.


            Na sequência, Norberto, emocionado, começa a defesa do irmão, conta dificuldades financeiras enfrentadas pela família. Dirigindo-se ao promotor, Norberto afirma-lhe que recordar o pai feriu o réu, o advogado, a mãe, uma família inteira, tendo ressuscitado uma sombra que lhe servirá como defesa. Norberto historia os sofrimentos familiares, o vício do pai, o tratamento brutal dedicado à mulher e aos filhos. Lembra que a mãe vivia como uma escrava, obediente ao seu senhor que, uma tarde, foi trazido morto: “Felizmente morrera!” Para minimizar a miséria que se seguiu, Julio começou a trabalhar. Norberto tornou-se advogado. A irmã de ambos, com o amparo de Julio, cursara o magistério e tornara-se professora. O irmão mais novo, Antonio, seguira para o seminário e, em breve, tornar-se-ia padre. Quando todos haviam encontrado o seu caminho, Julio teria sucumbido ao vício do pai. O advogado de defesa e irmão do réu passa a discorrer sobre a vida de Julio. Um roubo, um processo, a absolvição. O promotor interrompe-o e alerta que é um absurdo pedir clemência para um assassino. Mas Norberto avisa-lhe que não pede piedade para o assassino, implora perdão para um infeliz que morrerá vítima de um aneurisma na aorta.

            O segundo ato inicia-se em uma sala modesta com sofá ao centro e uma escada lateral, a casa de Carolina, mãe de Julio e Norberto. Lidia, a filha, chega e reclama que o cão da família, Sultão, vive sujando a casa, sugerindo que o animal seja sacrificado. A mãe, contrariada, afirma que não o fará, afinal, o cachorro pertence a Julio. Indagada por Norberto, Lidia reclama da vila, das pessoas, da escola em que trabalha e conta que, ao casar-se, pretende abandonar o magistério. Lidia mostra-se fria, incomodada com a situação de Julio. Norberto, na ausência da mãe, destila todo o seu desprezo pelas atitudes da irmã.

            O terceiro ato passa-se no mesmo espaço, estão em cena Carolina, Lidia e Antonio que elogia o presépio preparado pela mãe. Lidia, mais uma vez, mostra-se incomodada com Julio, que se diz encabulado, inclusive, com o tipo de alimento a ser servido e que teme não saber comportar-se à mesa, mas, convencido que a sua presença é importante, parece animar-se. Enquanto Julio afasta-se para barbear-se, chega Paulo, o médico, noivo de Lidia. Norberto explica-lhe que Julio vive na casa da mãe, embora tenha estado cinco anos preso; Antonio, por sua vez, completa que o irmão está condenado à morte em razão de um aneurisma. Norberto libera o médico de sua palavra, quanto ao casamento, se, por ventura, a verdade a respeito de Julio possa constranger-lhe. O médico lamenta que a noiva não tenha contado nada sobre o assunto, mas garante que a história não muda a sua decisão.

            Paulo e Lidia ficam a sós, ele confere-lhe um presente e reclama a sua falta de confiança para contar-lhe a história de Julio. Ela alega vergonha e, na sequência, chora, traz à tona todos os ressentimentos de infância e, ao encerrar as suas lembranças, julga-se outra pessoa, percebe que tem sido má para os seus, que humilha Julio quando, na verdade, ama-o. Julio chama pela mãe, quer saber se os convidados já chegaram e, em seguida, grita, diz que sente dor. Norberto e Antonio colocam-no em um sofá, Paulo examina-o e sugere que o levem a um hospital. Lidia dirige-se ao irmão e pede-lhe perdão. Julio pede pela mãe, quer a sua mão, tem medo. Antonio aproxima-se e Julio pede perdão, a primeira missa do irmão não será a missa festiva de Natal, mas uma missa de corpo presente.... Pede que a mãe segure a sua mão... Morre. Lidia grita, Carolina questiona o médico e Antonio afirma: “O teu filho nasce para Deus”.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Honrarás nossa mãe


           
            Honrarás nossa mãe é uma peça em cinco atos – sem autoria definida - que conta a história da família de dona Mariquinhas e seus filhos Edgar, Rosa e Roberto. A velha senhora e seu filho Roberto moram na casa de Edgar e Alzira. Edgar reclama o ócio que marca a vida de Roberto, a mãe pede paciência, acrescentando que Roberto é mais jovem. Mãe e filho discutem, Edgar retira-se do ambiente. Mariquinhas aconselha Roberto a trabalhar no exterior, dá-lhe um cordão de ouro para que compre a passagem. O filho, após relutar, obedece-a. Alzira sugere, mais tarde, que a sogra arrume emprego como copeira ou cozinheira, Nair, irmã de Alzira, tenta defendê-la e recebe a mesma sugestão.

            A família recebe a visita do senhor Barbosa, que ciente da viagem de Roberto, considera que o rapaz tomou uma boa atitude. Roberto retorna, informa que partirá em duas horas e que, portanto, deve abreviar a organização da bagagem. Mariquinhas prepara os pertences do filho, enquanto ele, na sala, diz a Barbosa que jamais será feliz longe da mãe. Antes de partir, Roberto intima o irmão a cuidar bem da sua mãe e avisa que enviará, mensalmente, uma pensão. Roberto, ao retirar-se, lembra a Edgar: “Nossa mãe, honrarás”.

            No segundo ato, os acontecimentos desenvolvem-se na casa de Raul e Rosa, filha de Mariquinhas, a qual, expulsa da residência de Edgar, busca abrigo na residência do genro. Raul mostra-se afetivo, mas Rosa e sua filha, Alice, demonstram extrema irritação com a presença da mulher. A rejeição da filha e da neta é ostensiva em todos os momentos. Contudo, os fatos tendem a um novo rumo. A empregada Julia, penalizada com a situação de dona Mariquinhas, expulsa pela filha, delata o adultério de Rosa. O marido rejeita-a e afirma para a filha que Rosa, a partir de então, estaria morta. A cena retorna para a casa de Edgar, em que Gomes, credor de Edgar, e Nair conversam, ele reitera o pedido de casamento e, novamente, ouve um não, visto que Nair repete amar Roberto. Gomes pede-lhe que chame Edgar. Gomes intimida-o e afiança-lhe que as promissórias devidas serão cobradas judicialmente. Gomes dá um prazo de 24 horas para a resposta afirmativa de Nair. Edgar e Alzira conjecturam sobre as formas de convencer Nair e Alzira decide conversar com ela, Nair segue em sua negativa, mas o retorno de Mariquinhas e seus conselhos parecem demover a moça.

            Barbosa reaparece e firma-se como credor de Raul e Edgar sendo que, no último caso, Barbosa avisa Edgar que a hipoteca da casa já venceu e que se ele não for educado, no mínimo, perderá a casa. Na sala, Nair prepara-se para fugir, mas antes deixará uma carta para a família. Alzira ouve a conversa, acusa Mariquinhas de ter instigado a jovem e Edgar, novamente, pede que a mãe deixe a sua casa. Edgar leva a mãe para um asilo, enquanto isso Nair foge para desespero de Alzira.

            O quarto ato marca o regresso de Roberto que é posto a par dos acontecimentos por . Barbosa O homem avisa-o que Edgar vive bêbado, caído pelas calçadas, enquanto Alzira apresenta um ferimento repugnante na perna.  Na sequência, Raul chega à casa de Barbosa e encontra Roberto, que o rejeita, mas Barbosa intervém. Neste momento, entra Zeca Gomes, amigo de Roberto, e que fora enviado para testar a sua família, inclusive, propondo-se a casar com Nair, em um plano urdido por Roberto para confirmar o caráter do irmão. Edgar também aparece e é agredido pelo irmão que o obriga a levá-lo ao asilo.

            Na sala do asilo, encontra-se Mariquinhas que varre o chão. Um enfermeiro aparece e apressa-lhe o trabalho, chamando-a preguiçosa. Entram Roberto, Edgar e Gomes, que encontram Nair, Roberto abraça-a e pergunta pela mãe, Nair afirma que a velha não reconhecerá o filho porque enlouqueceu. Mariquinhas, acompanhada por Nair, aparece, senta-se, mas o enfermeiro diz que é inútil conversar com ela, garante que a velha não reconhece ninguém. Mariquinhas, então, balbucia: “Roberto... Roberto...” Recorrendo a Gomes, Roberto entrega o cordão de ouro para a mãe, que não entende o que se passa. Mas, depois, Mariquinhas abraça o filho e reconhece Nair. Pergunta por Edgar, Rosa, Raul, pela sua neta e Roberto promete-lhe que, em seguida, irão vê-los.      Dona Mariquinhas pede que Roberto perdoe a todos. Roberto declara: “Olha, Edgar... contemple este quadro. De um lado, a noiva querida. Do outro, a mãe idolatrada. Que esta lição te sirva de exemplo. E não esqueça nunca do quarto mandamento da Lei de Deus que diz: Honrar pai e mãe”.

A peça Honrarás nossa mãe, que compôs o cartel de dramas e melodramas encenados pelo Teatro Serelepe nos anos 60 e 70 , é um dos textos analisados no livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe.